1- perfil“Não sou pago pelo Estado para ser juiz-torturador nem tampouco juiz-vingador”. Esta foi uma das frases usadas pelo titular da Vara da Infância e da Juventude de Itabuna, Marcos Bandeira, numa entrevista ao Diário Bahia, sobre os bastidores de uma possível crise entre o Judiciário, o Estado e a Polícia Civil.

Ao fechar, recentemente, a Casa de Custódia (anexo ao Complexo Policial), o magistrado comprou, digamos, uma “queda de braço”, em nome do que rezam o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e as Convenções Internacionais de Direitos Humanos. Tais dispositivos garantem um atendimento especializado em casos envolvendo menores. De um lado, está o juiz, que luta pela construção de um centro destinado ao cumprimento de medidas socioeducativas. Do outro, o Estado resiste à iniciativa. E para completar a linha de conflito, chega a Polícia Civil, que decidiu não levar mais os menores condenados para Salvador.

E essa decisão foi tomada, justamente, após a Correcional ter sido interditada, no final de agosto. Segundo Bandeira, ele não teve outra escolha, pois os direitos garantidos a menores estavam sendo reiteradamente desrespeitados. A unidade apresentava, conforme constatado na inspeção, condições sub-humanas. O juiz relatou que o mau cheiro nas celas era tão forte que os próprios agentes da Vigilância Sanitária, que participaram da visita, não conseguiram permanecer lá dentro por mais de dois minutos.

“Verificamos que o local é insalubre, fétido, sem um mínimo de aeração e higienização. Não havia cama, nem colchão ou água. O adolescente dormia no cimento armado e só se alimentava, precariamente, uma vez por dia. Nem havia pessoas qualificadas para cuidar deles, pois até os parentes não tinham acesso para levar comida ou vestuário. Enfim, o tratamento dispensado era desumano, cruel e degradante. Não me restou alternativa”, resumiu o juiz.

Perguntamos, então, como ficará a situação dos menores infratores, apreendidos em flagrante, daqui para frente? Vale ressaltar que até os que estavam na custódia no dia da vistoria foram liberados. “A autoridade policial vai ouvir o adolescente e entregá-lo aos pais ou responsáveis, como acontece na maioria dos casos, sob termo de compromisso de que seja o mesmo apresentado ao Ministério Público, como manda o art. 174 do ECA”, explicou o magistrado.

Ele esclareceu que nos crimes considerados hediondos – homicídio, latrocínio e estupro, por exemplo –, o delegado deverá encaminhar o adolescente acusado ao Ministério Público. Por sua vez, o MP, de posse das provas, vai requerer o internamento provisório por 45 dias. A pena ou medida socioeducativa sempre é cumprida no Case (Atendimento Socioeducativo de Salvador).

Sensação de impunidade

Dr. Marcos reconheceu que, embora a decisão de fechar a Correcional não tenha tido essa intenção, a sensação de impunidade pode ser constatada, “sobretudo, entre as pessoas que não conhecem como funciona o sistema da Justiça da Infância e Juventude”. Mas não é só isso. Ele revelou que recebeu um ofício da Coordenadoria Regional da Polícia Civil, informando que deixaria de fazer o transporte de adolescentes infratores para Salvador.

“Essa é minha maior preocupação no momento. Isso é que vai, sim, gerar uma sensação de impunidade na população itabunense. O Judiciário vai fazer sua parte, julgando o adolescente, absolvendo ou condenando. Todavia, a Polícia Civil, que sempre fez esse transporte, agora se nega”, acrescentou o magistrado.

Sem transporte, o menor, certamente, ficará em liberdade, afirmou o juiz. “O adolescente infrator perigoso, autor de atos infracionais graves, como homicídios, latrocínios, estupros e outros crimes hediondos ficará impune. Não quero aqui dizer que essa obrigação seja da Polícia Civil, mas com certeza é do Poder Executivo do Estado da Bahia”, disparou.

Meninas no tráfico

Numa realidade cruel, em que Itabuna se vê cercada por raios (A, B, ou DMP), ostentados pelo tráfico de drogas, quisemos saber a opinião de dr. Marcos sobre essa “recruta” de adolescentes e até crianças para o “exército” do tráfico. Antes de opinar, o magistrado fez uma revelação: as estatísticas comprovam um número cada vez maior de meninas no tráfico de drogas. “Infelizmente, quando o setor primário (políticas públicas) e o setor secundário (medidas de proteção) falham, o adolescente acaba caindo no setor terciário, que é o setor da aplicação das medidas socioeducativas ao adolescente que cometeu um ato infracional”, argumentou.

O juiz ressaltou os níveis assustadores dos últimos quatro anos em Itabuna, os quais chamou de “delinquência juvenil”. “O tráfico e o uso de drogas constituem um dos atos infracionais de maior ocorrência na Vara da Infância e Juventude ao lado do furto, roubo e porte de arma de fogo. Homicídios são poucos, eu diria até insignificantes, diante do conjunto dos crimes contra o patrimônio e de drogas”, enumerou. Ele atribui o número acentuado à falta de políticas públicas e de projetos sociais voltados para esse tipo de público.

“O adolescente acaba sendo atraído para o mundo colorido das drogas, onde o dinheiro fácil propicia as condições para realizar os seus sonhos de consumo. Logo, ele percebe que se enganchou numa teia de aranha e que dificilmente sairá vivo dessa armadilha. Muitos adolescentes e jovens são utilizados por adultos no tráfico de drogas, e um número significativo é morto pelo próprio traficante, em razão de dívidas provenientes do comércio de drogas”, ponderou.

Estado omisso

Pragmático, Bandeira fez questão de enfatizar que todo esse “rosário” de problemas não foi adquirido agora, com o fechamento da correcional (o primeiro ocorreu em 2010). Pelo contrário, sempre existiu. Na ótica do juiz, a situação se agravou quando o Semi (Setor do Menor Infrator) foi desativado, para a instalação da Delegacia de Homicídios, criada, na ocasião, pelo então coordenador Moisés Damasceno.

Ele deixou clara sua indignação com o Estado, que chama de “exageradamente omisso”, quando o assunto é infância e juventude. E vai adiante: Itabuna vive um verdadeiro retrocesso nesse quesito. “O Semi tinha uma estrutura mínima composta de uma delegada e um escrivão para atender o adolescente infrator. O paradoxo é tamanho que a desativação do órgão ocorreu no período que a delinquência juvenil chegou a índices insuportáveis, sendo que Itabuna liderou o ranking das cidades mais violentas do país para adolescentes e jovens, nos anos de 2009 e 2010. Em 2011, só perdeu para Marabá, no Pará, em números de homicídios praticados contra adolescentes”, criticou.

Para o magistrado, a reativação do Semi não adiantaria mais, a essa altura do campeonato. Veemente, ele defende a instalação de uma delegacia especializada para adolescentes infratores, com delegados e equipe qualificada para o atendimento socioeducativo. Mais uma vez, faz duras críticas ao Estado.

“Vejo com tristeza que em Itabuna, o Estado virou as costas e violentou o princípio da prioridade absoluta, estabelecido no art. 227 da Constituição Federal e no art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, ao negar esse serviço essencial, descurando de dar precedência de atendimento nos serviços públicos e de relevância pública, relacionados ao adolescente infrator”, declarou.

E quais as perspectivas concretas de o município sediar um lugar adequado para abrigar menores infratores? – questionamos. O juiz foi categórico ao admitir que não acredita numa iniciativa voluntária do Estado para a construção desta unidade. “Se acontecer, será por decisão judicial”, disse.

De acordo com ele, Itabuna é a comarca da Bahia que mais encaminha adolescentes para cumprir medidas em Salvador. E assegurou que o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDECA), sediado em Salvador, já deliberou a implantação de uma política pública específica, instalando uma unidade de internação para adolescentes infratores, com base nas diretrizes do SINASE – Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo.

“Com base nesses elementos, o Ministério Público Estadual ingressou com uma ação civil pública contra o Estado da Bahia e eu julguei procedente, condenando o Estado a construir aqui uma unidade de internação. Todavia, houve uma questão processual que ainda não permitiu a execução da decisão. Creio que é a única esperança para Itabuna, onde sequer tem unidade de semiliberdade”, informou.

Um imóvel, contudo, já está disponível no bairro São Judas, onde seria construído um centro destinado à semiliberdade. “Inclusive com dotação orçamentária, segundo técnicos da FUNDAC, mas a unidade não sai”, lamentou. Detalhe: no caso de condenação a uma medida de semiliberdade, o menor é encaminhado para Vitória da Conquista ou Teixeira de Freitas.

Fonte: Diário Bahia